*Rudá Ricci
1. A esquerda militarizada
Não é incomum à história da esquerda latino-americana certa intimidade com as estruturas militares. Quase sempre, este vínculo distorce a ideologia de ambas as partes. No caso brasileiro, esta aproximação – que teve em Prestes o dirigente-emblema que liderou o levante dos tenentes na década de 20 e, depois, se tornou o maior dirigente comunista do Brasil, até sua morte – gerou uma inusitada aproximação do discurso marxista com o positivismo.
O filósofo brasileiro Leandro Konder chegou a estudar como este sincretismo baniu qualquer raciocínio dialético das teses dos partidos de esquerda que se aventuraram por esta trincheira. Tudo se resumiu à escatologia, onde o futuro humano estaria predestinado.
Hugo Chávez já escreveu mais uma página desta estranha história que militariza o projeto de esquerda na América Latina. Se ser esquerda, no século XXI, é manter a defesa da igualdade social e agregar a defesa do desenvolvimento sustentável e da democracia participativa, o presidente venezuelano tenta se inscrever nesta agenda de maneira insólita. Como se estivesse enfrentando o mesmo dilema de Sísifo.
Chávez, em princípio, não rompeu com a lógica democrática. Todas mudanças que conquistou foram conseguidas na disputa pública e a partir do voto. É verdade que tentou e sofreu tentativa de golpe de Estado, o que define um terreno político movediço, de lado a lado, entre situação e oposição política. Mas é verdade que várias de suas iniciativas resvalam no que a ciência política denominou de totalitarismo. O totalitarismo, ao contrário do autoritarismo, é caracterizado pela mobilização permanente da sociedade e pela ausência de regras de disputa nítidas, que possibilitam a alternância no poder. Também possui um traço marcante de desconhecimento das estruturas tradicionais de representação social, como sindicatos e demais partidos políticos (que não o da liderança totalitária). Hugo Chávez transita por este caminho, mas não se pode afirmar que esteja instalando o totalitarismo na Venezuela. Por outro lado, caminha para a democracia participativa por atalhos contraditórios. Os conselhos comunais constituem um bom exemplo desta natureza ambígua das iniciativas do governo federal.
Recordemos, ainda que brevemente, o que são estes conselhos. Em 10 de abril de 2006, o governo publicou a execução da Lei dos Conselhos Municipais (Lei 5.806). Uma lei composta de 33 artigos. No mesmo ano, o Ministério de Participação Popular e Desenvolvimento Social anunciava que já existiam mais de 16 mil conselhos desta natureza (há informações não oficiais que já teriam atingido a cifra de 50 mil conselhos comunais em todo o país). Duzentas famílias compõem um conselho comunal. É comum que um conselho seja organizado a partir de assembléias públicas, realizadas em ruas, a céu aberto. Os problemas locais passam a ser administrados pelos conselhos, que recebem recursos federais depositados num banco comunal. Como a lei não define a relação com as câmaras municipais, abriu-se no país um amplo debate a respeito da natureza política desta iniciativa. O debate nacional não se conclui justamente em virtude da ambigüidade das iniciativas de Chávez. É possível intuir que a lei sugere a criação de mecanismos de descentralização da gestão pública e participação direta dos cidadãos em sistemas de elaboração de políticas públicas locais. O nome para esta iniciativa é auto-gestão ou co-gestão pública. Por outro lado, pode significar a ruptura com os entes federativos oficiais. As Câmaras Municipais não estão sob risco, mas é evidente que os conselhos comunais criam uma nova estrutura gerencial de elaboração e administração de políticas locais. Não está nítido se o que ocorre é uma transição para uma estrutura de gestão pública de tipo cubana, onde os conselhos comunais se estruturariam de maneira federativa até chegarem a conselhos macroregionais ou nacional de gestão. Neste caso, todo desenho federativo estaria sendo radicalmente alterado. Mesmo assim, há temas de gestão pública que não se tratam em âmbito local, como é o caso da engenharia e planejamento viário, mas tais limites não são objeto de elaboração governamental.
Toda esta ambigüidade pode ter origem na origem militar do presidente venezuelano. Pode ser, ainda, uma charada que se resolve com sua fixação na figura de Bolívar, uma grande liderança histórica cujos escritos são absolutamente ambíguos em relação à democracia. A centralização voluntarista pode ser uma generosidade que, na prática, tangencia alguns traços totalitários. Pode ser uma aproximação a passos largos com a experiência cubana. Mas pode manter a ambigüidade e se desenhar aos poucos, numa criativa e inusitada experiência de democracia participativa em âmbito nacional.
2. Chavismo: entre a solidariedade latino-americana e o intervencionsimo político
Há toda uma aposta entre analistas políticos sobre as motivações que levam à política externa de Chávez e, principalmente, sua sustentabilidade. A política externa de seu governo é seu principal cartão de visitas. Há, novamente, uma profunda ambigüidade que o tortuoso discurso de Chávez deixa ainda mais nebuloso. Sua política externa é sustentada pelo preço do barril do petróleo que no ano passado chegou às nuvens.
Uma das linhas de interpretação da política externa é a de que Chávez mantém uma política deliberada de confronto. Seu alvo discursivo é a política imperialista dos EUA. Assume uma postura de surfista do sentimento anti-americano mundial. Por aí, constrói uma importante polarização internacional, que coloca a Venezuela no cenário mundial. Há riscos, mas também vantagens evidentes. Uma delas é que consegue se aproximar economicamente de todo bloco declaradamente anti-EUA do mundo. A partir de um foco ideológico, consegue aumentar o poder geopolítico de Chávez. Lula também se aproveita deste novo cenário geopolítico e se posiciona no centro do espectro ideológico latino-americano, ao lado do Chile, procurando consolidar o Brasil como principal interlocutor dos EUA e Europa, num evidente papel mediador. Lula se beneficia de uma tese discutível mas que ganha cada vez mais adeptos entre analistas internacionais e grande imprensa regional que opõe o que seria uma esquerda ruim (composta por Venezuela, Cuba e Bolívia) de uma esquerda boa (composta pelo Brasil e Chile) latino-americana.
Não deixa de ser um jogo diplomático atípico de Hugo Chávez. A Venezuela se mantém como importante pagador dos contratos internacionais e fornecedor de petróleo para os EUA. Corre contra o tempo (o tempo da queda do preço do barril de petróleo) e procura se fortalecer no norte da América do Sul e parte da América Central. Poderá, assim, ser um parceiro com força no Mercosul. Uma força apoiada em dois pilares: o petróleo e o poder simbólico. Para tanto, articula os dois pilares para crescer politicamente junto aos países pobres da região que sugiro ser o seu foco geopolítico prioritário.
Evo Morales é, neste sentido, seu maior trunfo. A assessoria direta de técnicos da Venezuela ao governo boliviano durante o embate recente com a Petrobrás revela uma disputa regional que até então era limitada às forças econômicas de Brasil e México. Não por outro motivo, Chávez criou outra experimentação retórica com o lançamento da Alternativa Boliviariana para a América Latina e Caribe (ALBA), que aproximou ainda mais Venezuela de Cuba. A agressividade da política externa continuou com a compra de Bônus do Governo Nacional Argentino (Boden), título da dívida pública emitido em dólares com vencimento em 2012 (num total de 2 bilhões de dólares). A aproximação com o governo argentino começa a criar um novo pólo no interior do Mercosul. Chávez sugeriu, inclusive, a criação de um Bono del Sur. O Paraguai procurou tomar o bonde desta história e ofereceu ao presidente venezuelano títulos da dívida paraguaia com a usina hidrelétrica de Itaipu. A Venezuela, até o início deste ano, já havia investido mais de 6 bilhões de dólares para financiar projetos estratégicos na América do Sul, incluindo até mesmo o financiamento da escola de samba brasileira, Unidos da Vila Isabel, no desfile do Carnaval de 2006 (a PDVSA doou 2 milhões de reais à esta escola de samba).
O discurso de Chávez se funda no nacionalismo e na identidade latino-americana. E, novamente, se consolida no duplo pilar. Daí sua proposta mais ousada e de maior impacto ter sido a integração regional a partir da criação da Petrosul, Petrocaribe, Telesul e gasoduto continental. Entretanto, o sucesso de sua política externa parece menos nítida em alguns episódios. Este foi o caso da eleição da Nicarágua, que elegeu o líder sandinista Daniel Ortega. É sabido o quanto o governo venezuelano se empenhou diretamente na vitória de Ortega. Chávez procurou cobrar este apoio logo após a vitória eleitoral. Ocorre que se Ortega se alinha na política externa (como na franca oposição à proposta do subsecretário norte-americano Robert Zoellick, de fortalecimento do acordo comercial conhecido como Cafta, envolvendo EUA, El Salvador, Nicarágua, Guatemala, Costa Rica, Honduras e República Dominicana), não há nenhuma sinalização concreta que seguirá os passos de Chávez em sua política interna, inclusive em virtude da aliança política que o levou ao poder. Na política externa, as sinalizações são concretas. Este foi o caso da recusa, no início de fevereiro, do governo destruir mísseis anti-aéreos, como desejava a Casa Branca. Contudo, o pacto estabelecido em 1999 entre Ortega e Alemán (ou os partidos PLC e FSLN) indica uma política interna totalmente oposta. A vitória eleitoral de 2006 foi armada a partir de um acordo liderado por Daniel Ortega com parte dos contras (forças guerrilheiras conservadoras de resistência ao primeiro governo sandinista, treinadas pela CIA). Jaime Carazo, um ex-contra, é aliado e governa a Nicarágua com Ortega. Em 2005, o líder sandinista já havia confessado publicamente à alta cúpula da Igreja Católica de seu país, os pecados sandinistas dos anos 80. A aproximação com a Igreja Católica gerou, na prática, o voto de deputados sandinistas contra o aborto. Durante a campanha, em 29 de setembro, Ortega se reuniu com investidores dos EUA para garantir a não ruptura com acordos econômicos. Não há, portanto, alinhamento político de Ortega com Chávez. O presidente venezuelano, contudo, mantém sua persistência e cobra a fatura do apoio político. Transita, mais uma vez, pela incoerência ou contradição política. Segue forçando a hegemonia do seu governo sobre parte do continente. Em suma, sua política externa é ambígua, não declarada, agressiva e ofensiva. Sua força reside nos dividendos oriundos do petróleo e no seu discurso voltado para a construção de uma imagem de pobreza ressentida latino-americana. Não se trata, assim, de uma política isolacionista, como crêem alguns analistas da grande imprensa. É antes um estratagema geopolítico que conseguiu situar a Venezuela num espaço internacional poucas vezes percebido na história do país.Entre um projeto pessoal ambicioso e uma estratégia ideológica socialista, é difícil diferenciar a retórica da intenção objetiva e concreta. Segue, assim, sua contradição original: entre a centralização política e a participação dos cidadãos, entre o respeito aos acordos comerciais internacionais e o discurso anti-EUA, entre o cerco aos países com economia menos pujante da América Latina e a não ruptura com os principais líderes do continente.
Não é incomum à história da esquerda latino-americana certa intimidade com as estruturas militares. Quase sempre, este vínculo distorce a ideologia de ambas as partes. No caso brasileiro, esta aproximação – que teve em Prestes o dirigente-emblema que liderou o levante dos tenentes na década de 20 e, depois, se tornou o maior dirigente comunista do Brasil, até sua morte – gerou uma inusitada aproximação do discurso marxista com o positivismo.
O filósofo brasileiro Leandro Konder chegou a estudar como este sincretismo baniu qualquer raciocínio dialético das teses dos partidos de esquerda que se aventuraram por esta trincheira. Tudo se resumiu à escatologia, onde o futuro humano estaria predestinado.
Hugo Chávez já escreveu mais uma página desta estranha história que militariza o projeto de esquerda na América Latina. Se ser esquerda, no século XXI, é manter a defesa da igualdade social e agregar a defesa do desenvolvimento sustentável e da democracia participativa, o presidente venezuelano tenta se inscrever nesta agenda de maneira insólita. Como se estivesse enfrentando o mesmo dilema de Sísifo.
Chávez, em princípio, não rompeu com a lógica democrática. Todas mudanças que conquistou foram conseguidas na disputa pública e a partir do voto. É verdade que tentou e sofreu tentativa de golpe de Estado, o que define um terreno político movediço, de lado a lado, entre situação e oposição política. Mas é verdade que várias de suas iniciativas resvalam no que a ciência política denominou de totalitarismo. O totalitarismo, ao contrário do autoritarismo, é caracterizado pela mobilização permanente da sociedade e pela ausência de regras de disputa nítidas, que possibilitam a alternância no poder. Também possui um traço marcante de desconhecimento das estruturas tradicionais de representação social, como sindicatos e demais partidos políticos (que não o da liderança totalitária). Hugo Chávez transita por este caminho, mas não se pode afirmar que esteja instalando o totalitarismo na Venezuela. Por outro lado, caminha para a democracia participativa por atalhos contraditórios. Os conselhos comunais constituem um bom exemplo desta natureza ambígua das iniciativas do governo federal.
Recordemos, ainda que brevemente, o que são estes conselhos. Em 10 de abril de 2006, o governo publicou a execução da Lei dos Conselhos Municipais (Lei 5.806). Uma lei composta de 33 artigos. No mesmo ano, o Ministério de Participação Popular e Desenvolvimento Social anunciava que já existiam mais de 16 mil conselhos desta natureza (há informações não oficiais que já teriam atingido a cifra de 50 mil conselhos comunais em todo o país). Duzentas famílias compõem um conselho comunal. É comum que um conselho seja organizado a partir de assembléias públicas, realizadas em ruas, a céu aberto. Os problemas locais passam a ser administrados pelos conselhos, que recebem recursos federais depositados num banco comunal. Como a lei não define a relação com as câmaras municipais, abriu-se no país um amplo debate a respeito da natureza política desta iniciativa. O debate nacional não se conclui justamente em virtude da ambigüidade das iniciativas de Chávez. É possível intuir que a lei sugere a criação de mecanismos de descentralização da gestão pública e participação direta dos cidadãos em sistemas de elaboração de políticas públicas locais. O nome para esta iniciativa é auto-gestão ou co-gestão pública. Por outro lado, pode significar a ruptura com os entes federativos oficiais. As Câmaras Municipais não estão sob risco, mas é evidente que os conselhos comunais criam uma nova estrutura gerencial de elaboração e administração de políticas locais. Não está nítido se o que ocorre é uma transição para uma estrutura de gestão pública de tipo cubana, onde os conselhos comunais se estruturariam de maneira federativa até chegarem a conselhos macroregionais ou nacional de gestão. Neste caso, todo desenho federativo estaria sendo radicalmente alterado. Mesmo assim, há temas de gestão pública que não se tratam em âmbito local, como é o caso da engenharia e planejamento viário, mas tais limites não são objeto de elaboração governamental.
Toda esta ambigüidade pode ter origem na origem militar do presidente venezuelano. Pode ser, ainda, uma charada que se resolve com sua fixação na figura de Bolívar, uma grande liderança histórica cujos escritos são absolutamente ambíguos em relação à democracia. A centralização voluntarista pode ser uma generosidade que, na prática, tangencia alguns traços totalitários. Pode ser uma aproximação a passos largos com a experiência cubana. Mas pode manter a ambigüidade e se desenhar aos poucos, numa criativa e inusitada experiência de democracia participativa em âmbito nacional.
2. Chavismo: entre a solidariedade latino-americana e o intervencionsimo político
Há toda uma aposta entre analistas políticos sobre as motivações que levam à política externa de Chávez e, principalmente, sua sustentabilidade. A política externa de seu governo é seu principal cartão de visitas. Há, novamente, uma profunda ambigüidade que o tortuoso discurso de Chávez deixa ainda mais nebuloso. Sua política externa é sustentada pelo preço do barril do petróleo que no ano passado chegou às nuvens.
Uma das linhas de interpretação da política externa é a de que Chávez mantém uma política deliberada de confronto. Seu alvo discursivo é a política imperialista dos EUA. Assume uma postura de surfista do sentimento anti-americano mundial. Por aí, constrói uma importante polarização internacional, que coloca a Venezuela no cenário mundial. Há riscos, mas também vantagens evidentes. Uma delas é que consegue se aproximar economicamente de todo bloco declaradamente anti-EUA do mundo. A partir de um foco ideológico, consegue aumentar o poder geopolítico de Chávez. Lula também se aproveita deste novo cenário geopolítico e se posiciona no centro do espectro ideológico latino-americano, ao lado do Chile, procurando consolidar o Brasil como principal interlocutor dos EUA e Europa, num evidente papel mediador. Lula se beneficia de uma tese discutível mas que ganha cada vez mais adeptos entre analistas internacionais e grande imprensa regional que opõe o que seria uma esquerda ruim (composta por Venezuela, Cuba e Bolívia) de uma esquerda boa (composta pelo Brasil e Chile) latino-americana.
Não deixa de ser um jogo diplomático atípico de Hugo Chávez. A Venezuela se mantém como importante pagador dos contratos internacionais e fornecedor de petróleo para os EUA. Corre contra o tempo (o tempo da queda do preço do barril de petróleo) e procura se fortalecer no norte da América do Sul e parte da América Central. Poderá, assim, ser um parceiro com força no Mercosul. Uma força apoiada em dois pilares: o petróleo e o poder simbólico. Para tanto, articula os dois pilares para crescer politicamente junto aos países pobres da região que sugiro ser o seu foco geopolítico prioritário.
Evo Morales é, neste sentido, seu maior trunfo. A assessoria direta de técnicos da Venezuela ao governo boliviano durante o embate recente com a Petrobrás revela uma disputa regional que até então era limitada às forças econômicas de Brasil e México. Não por outro motivo, Chávez criou outra experimentação retórica com o lançamento da Alternativa Boliviariana para a América Latina e Caribe (ALBA), que aproximou ainda mais Venezuela de Cuba. A agressividade da política externa continuou com a compra de Bônus do Governo Nacional Argentino (Boden), título da dívida pública emitido em dólares com vencimento em 2012 (num total de 2 bilhões de dólares). A aproximação com o governo argentino começa a criar um novo pólo no interior do Mercosul. Chávez sugeriu, inclusive, a criação de um Bono del Sur. O Paraguai procurou tomar o bonde desta história e ofereceu ao presidente venezuelano títulos da dívida paraguaia com a usina hidrelétrica de Itaipu. A Venezuela, até o início deste ano, já havia investido mais de 6 bilhões de dólares para financiar projetos estratégicos na América do Sul, incluindo até mesmo o financiamento da escola de samba brasileira, Unidos da Vila Isabel, no desfile do Carnaval de 2006 (a PDVSA doou 2 milhões de reais à esta escola de samba).
O discurso de Chávez se funda no nacionalismo e na identidade latino-americana. E, novamente, se consolida no duplo pilar. Daí sua proposta mais ousada e de maior impacto ter sido a integração regional a partir da criação da Petrosul, Petrocaribe, Telesul e gasoduto continental. Entretanto, o sucesso de sua política externa parece menos nítida em alguns episódios. Este foi o caso da eleição da Nicarágua, que elegeu o líder sandinista Daniel Ortega. É sabido o quanto o governo venezuelano se empenhou diretamente na vitória de Ortega. Chávez procurou cobrar este apoio logo após a vitória eleitoral. Ocorre que se Ortega se alinha na política externa (como na franca oposição à proposta do subsecretário norte-americano Robert Zoellick, de fortalecimento do acordo comercial conhecido como Cafta, envolvendo EUA, El Salvador, Nicarágua, Guatemala, Costa Rica, Honduras e República Dominicana), não há nenhuma sinalização concreta que seguirá os passos de Chávez em sua política interna, inclusive em virtude da aliança política que o levou ao poder. Na política externa, as sinalizações são concretas. Este foi o caso da recusa, no início de fevereiro, do governo destruir mísseis anti-aéreos, como desejava a Casa Branca. Contudo, o pacto estabelecido em 1999 entre Ortega e Alemán (ou os partidos PLC e FSLN) indica uma política interna totalmente oposta. A vitória eleitoral de 2006 foi armada a partir de um acordo liderado por Daniel Ortega com parte dos contras (forças guerrilheiras conservadoras de resistência ao primeiro governo sandinista, treinadas pela CIA). Jaime Carazo, um ex-contra, é aliado e governa a Nicarágua com Ortega. Em 2005, o líder sandinista já havia confessado publicamente à alta cúpula da Igreja Católica de seu país, os pecados sandinistas dos anos 80. A aproximação com a Igreja Católica gerou, na prática, o voto de deputados sandinistas contra o aborto. Durante a campanha, em 29 de setembro, Ortega se reuniu com investidores dos EUA para garantir a não ruptura com acordos econômicos. Não há, portanto, alinhamento político de Ortega com Chávez. O presidente venezuelano, contudo, mantém sua persistência e cobra a fatura do apoio político. Transita, mais uma vez, pela incoerência ou contradição política. Segue forçando a hegemonia do seu governo sobre parte do continente. Em suma, sua política externa é ambígua, não declarada, agressiva e ofensiva. Sua força reside nos dividendos oriundos do petróleo e no seu discurso voltado para a construção de uma imagem de pobreza ressentida latino-americana. Não se trata, assim, de uma política isolacionista, como crêem alguns analistas da grande imprensa. É antes um estratagema geopolítico que conseguiu situar a Venezuela num espaço internacional poucas vezes percebido na história do país.Entre um projeto pessoal ambicioso e uma estratégia ideológica socialista, é difícil diferenciar a retórica da intenção objetiva e concreta. Segue, assim, sua contradição original: entre a centralização política e a participação dos cidadãos, entre o respeito aos acordos comerciais internacionais e o discurso anti-EUA, entre o cerco aos países com economia menos pujante da América Latina e a não ruptura com os principais líderes do continente.
Rudá Ricci - Sociólogo brasileiro, 44 anos, Doutor em Ciências Sociais, Coordenador do Instituto Cultiva e membro do Comitê Executivo Nacional do Fórum Brasil do Orçamento.
E-mail: ruda@inet.com.br .
Site: www.cultiva.org.br .
O artigo acima foi uma solicitação do professor Carlos Figueredo, da Universidad Metropolitana de Caracas.
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